quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Ela, em forma e conteúdo


Levou-se ao mar como sempre fizera. Deu-se sensualmente às águas e delas saiu molhada, deleitosa, cheia de graça. Elogiaram-lhe o corpo. Respondeu com ar de quem se surpreendia: “Não basta”. Enquanto caminhava, se lhe repercutiram as próprias palavras: “Não basta”. Então entendeu: “Já não bastava”. Não lhe veio qualquer culpa pelo gosto que tinha nos prazeres dos sentidos nem pelo tanto que os gozara. O corpo, afinal, ademais de belo, era lascivo. Ela acolhia essa lascívia com satisfação. Gostava de se passar, de oferecer-se mais do que o corpo pedia.
Dava-se, entretanto, conta de que se faltava. Pensou apreensiva que a sua juventude entrava em agonia, que teria que assumir os dissabores da vida adulta. Veio-lhe o “ser ou não ser, eis questão. Será mais nobre sofrer na alma… Talvez sonhar”. Recusou os conflitos do verso, não queria sofrer na alma, queria o talvez sonhar. Sorriu, pensou: “Estou com as dores das circunstâncias. As circunstâncias da existência são a alma da gente. Eu penso, logo sofro.” Sentou-se na areia. Deu-se ao prazer de se sentir destino dos olhares ávidos por seu corpo.
À cabeça não lhe vieram as músicas da noite anterior. Encontrou-se cantarolando a suave melodia: “Esses moços, pobres moços \ Ah! Se soubessem o que eu sei”. Não podia ser, mas se conformou: dores de passagem. A culpa seria do que andara lendo. Lera desavisadamente. Na faculdade, as tarefas… Não imaginava que daria nisso, que pensaria, que tudo aquilo habitaria a sua cabeça, que já não teria como deixar de fazer as contas do mundo. Entendeu-se: gostava de ser o que era; fascinava-se com o que podia ser. Eram as amarguras do superar-se e os prazeres da superação.
Olhou o derredor com um jeito pensado. Era gosto e aflição. Recordou um texto: “A dor de ser intelectual: O professor nos avisou que estávamos entrando por uma porta que já não tinha volta. Tornávamo-nos intelectuais e não importa de qual classe social vínhamos, nunca poderíamos voltar a ela, jamais seríamos aceitos em nenhuma delas. Isso me fica claro agora. E nem sou intelectual o bastante, pelo menos não como gostaria de ser. Há tanto ainda o que ler e aprender. Sinto-me cansado e angustiado por isso” (Sérgio Rodrigo, razoesinconfessas.blogspot).
“Eu caçador de mim \ Vou me encontrar \ Longe do meu lugar \ Nada a temer senão o correr da luta.” “Esses versos, partes da canção… Discordo. Eu construtora de mim, vou me fazer a mim, me erguer sobre o meu lugar. Prefiro assim. Não temo o correr da luta, gosto de peleia, sempre pelejei. Eu me inventei, me fiz e me quero bem. Eu vou ser eu, não vou ser multidão. Bem, eu quero ser intelectual. E eu sei por quê.”
“Um intelectual é leal, mas contestador (Sartre); é maldito, nomeia as coisas indizíveis (Verlaine); é uma testemunha e um ator de seu tempo; não traça normas a ninguém e nem detém nenhuma coisa; busca a natureza intrínseca de tudo e as múltiplas verdades contidas numa mesma realidade; vê em si mesmo os vestígios do futuro e as pegadas do passado; aponta para a desordem sem tentar controlá-la. O prazer do intelectual é execrar e ser execrado, é ser livre apesar de pertencer a todas as misérias do mundo” (Gisele Leite, br.monografias.com).
Ao fim de nossa conversa, disse-me ela: “Isso tudo é verdade e me chega para o ofício de intelectual, mas não me satisfaz para a vida. Para viver, não me bastam minhas formas, mas também não me vou contentar com a compreensão do aparente ou das subjacências das coisas. Se penso sobre modos de vida, penso, igualmente, em viver. Contabilidade, para ir zerando: um tanto à função do intelectual, outro à esbórnia das emoções e dos sentidos. Se eu tiver consciência do mundo, mas não tiver consciência do mim, não existo. Até mais ver.”

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