quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

As consequências



 É insuportável viver assim… Desculpa, estou mal. Só me resta desvontade, desgosto, desilusão. Ele está fazendo isso comigo, eu não faço nada. – Ele está fazendo!? Há constrangimento? Alguma chantagem que te poderia atingir? A mim me parece tão simples… Sai daí, o mundo te espera de braços abertos. – Mas como? Como vou sair? – Que tal começar deixando de responsabilizá-lo pela tua permanência? Que me dizes de um pequeno apartamento? Em seguida faz as malas, busca a porta, abra-a e a ultrapassa… A vida cá fora te receberá calorosamente, ou, pelo menos, com mais calor do que tens aí.
– Ah, parece tão fácil. Não tenho coragem. Não sou forte. Nunca me acostumei a tomar decisões – Interessante o teu pretexto para ficar: fraqueza. Não há fraqueza. Tudo em ti é vontade forte de ficar. Queres os prazeres do teu desprazer. – Tens razão… Fazendo o jogo do contente. – Olha… Os interesses de ficar são teus…  – Tenho que ter atitude, ainda há tempo de ser feliz,  de sentir o sabor da liberdade. – Pieguice. – Mas não me cobras atitude? – Não, não, não cobro. Contesto-te quando responsabilizas a outro pelo que deixas de fazer. E não te falta atitude. Tomas a atitude de ficar. Ficar onde estás é atitude tua e de mais ninguém.
– Ai! Vou, sim, vou dar um basta nessa vida medíocre, falsa, infeliz que vivo. – É mesmo? Quando? – Segredo: já andei por imobiliárias. Sabes? Minha advogada disse: ele só precisa de uma serviçal para ficar bem… Uma gerente da casa e dos interesses dele. – Imobiliária!? Advogada!? Andas tateando outras circunstâncias, então? Olha, a serviçal da existência do outro: muitos queremos uma, alguns conseguem e não se constrangem em desfrutá-la. E há quem goze no se prestar ao triste papel.
– Rsrs. Não. É que não é mesmo simples. E o apartamento… – Há inúmeros pela cidade. – Rsrs. Mas eu quero um lugar certinho, pronto, me esperando. Não quero qualquer coisa. – Claro, entendo: queres algo difícil de encontrar. Desenhaste um apartamento impossível. Assim, bem, enquanto não o achas, vais ficando, e com um justo motivo para ficar. – Mas estou procurando, já é alguma coisa, não? – Se te convences… – Ai! Vou te contar: já achei, preenchi papéis, inclusive com fiador… – Mas isso é um passo libertário, ainda que retrocedido. – Não era bem o que eu queria. – Tu bem podes criar o teu lugar, se não o achares. – Eu sei, eu sei, só não quero ficar em um lugar ruim.  – Eu imaginava que só não querias ficar onde estás.
– É… Liberdade não tem preço, tenho que ir, bater a porta e pronto. – Em verdade liberdade tem preço, e muita gente se engana atrasando o pagamento. – Mas… – Lembras o Sartre? “Viver é ficar equilibrando entre as escolhas e as consequências”. E as consequências têm custo. – Ai que coisa difícil para mim. – Para todo mundo, não te ponhas como vítima, como se o mundo te tivesse enredado em uma dificuldade particular. – Mas não consigo dar o passo decisivo. – Não dar o passo decisivo é dar o passo decisivo no sentido de tudo ficar como está.
– Pensando nisso, as consequências… – Não há garantias de serem melhores ou piores. Quero dizer: ficar também tem consequências. Se não largas o que tens, não pegarás mais nada. Não cabe tudo, não é? Estás a repetir tuas exculpações de permanência. – Mas são mesmo tantas coisas. – São? Pois está: faz a lista. – Rsrs. – Viste? Olha, se tens prazer na vida que chamas de medíocre, assume, fica nela. Não serás a única nesse conflito entre o ir e o ficar.
– Fui deixando tempo passar, sem me dar conta. Fico com raiva de mim, agora. Mas agora é tarde para mudar, pelo menos por enquanto… – Por enquanto é tarde? Mais tarde será adequado? Não cabe por enquanto. – Não te preocupes, vou fazer tudo certo. – Não é possível. – Como assim? Não é possível fazer tudo certo. Não há exatidão no futuro. – É que já sei o que quero. – E o que isso muda? É muito pouco; se não for feito valer, é nada. – Quero ir para a praia, agora, nua. Quero o carinho do mar. – O mar te espera, suponho. – Água muito fria. – Há outros desejos para cumprires nua, não? E são intensos, e têm urgência, e querem calor… – Rsrs.

Tempos de uma mulher




A história do Ocidente, o que se chama de tradição ocidental, foi extremamente perversa com as mulheres. Essa perversidade obteve suporte moral na narrativa bíblica. O Velho Testamento, quando dá sua versão para os primórdios da humanidade, garante que, criado o homem, foi percebido que não lhe seria bom ficar sozinho. Deu-se-lhe, então, uma ajuda: criou-se o gado. O homem, todavia, considerou que, para si mesmo, não encontrava ajudante adequado. O criador, então, fabricou-lhe a mulher. Detalhes em Gênesis – 2,18. Triste encargo. A mulher nasceu, conforme os costumes gerais acreditados e praticados, carimbada como ajudante do homem. E não está fácil livrar-se de tal sina.
Com o passar do tempo, algumas mulheres foram tomando posição, pensando, falando. O custo era caro. Várias foram lapidadas, mortas a pedradas; outras foram queimadas vivas, em fogueiras vistosas, para dar exemplo; outras tantas ainda morreram pelas mãos dos maridos, que lhes podiam dar fim conforme o próprio arbítrio. Mesmo hoje, inúmeras mulheres vivem submetidas. Não falo de brigas de casal, falo de uma vida inteira de submissão aos interesses dos companheiros. Ainda, os homens têm vontade; as mulheres, em geral, têm destino: seguir o marido.
Posição política ampla de liberdade, no sentido de consciência, atitude e publicidade, somente aconteceu nos anos sessenta. Só na segunda parte do século passado as mulheres tiveram condições de posição e de debate. Foi durante a Segunda Guerra (1939-1945), nos Estados Unidos, que elas foram convocadas a trabalhar. Os homens estavam em combate; era preciso que o parque industrial bélico, as fábricas de armas operassem noite e dia. As muitas mulheres que viraram operárias descobriram o dinheiro, as ruas, as reuniões, a liberdade de ir e vir sem um marido dando palpite.
Bem, muito resumidamente: acabou a Guerra e os homens voltaram para casa. O lugar deles estava ocupado. O Governo iniciou – e o mercado adotou – uma campanha, com ampla publicidade, para convencer o “sexo frágil” a voltar para o lar. As famílias valorizaram as cozinhas, a indústria inventou o eletrodoméstico, as rádios tocaram músicas de exaltação à prenda do lar. Algumas mulheres, porém, não cederam, e deram início às campanhas feministas. Aos poucos a coisa se propagou e os ganhos sociais modificaram as regras jurídicas. O espaço social da mulher passou a existir.
Hoje, no Brasil, as mulheres já superaram a escolaridade dos homens em um ano (9,2 anos, ainda baixa), metade delas trabalha, e controlam a natalidade razoavelmente. Quando há concursos, elas normalmente levam vantagem. Empregos nos quais não eram aceitas, elas competentemente os invadiram. Nos cargos eletivos, as conquistas femininas crescem em participação e em sufrágios obtidos. Mulher importante já foi notícia; mulher importante, agora, é coisa comum, sempre e mais. As mulheres chegaram para ficar.
No Poder Judiciário, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso indicou a primeira mulher, Eliana Calmon Alves, para um tribunal superior, o STJ, em 1999, elas já compunham cerca de 30% da Justiça do Trabalho, 20% da Justiça Comum e 15% da Justiça Federal. Mas bem antes disso, antes de qualquer outra, Thereza Grisólia Tang tornava-se, em 1954, a primeira juíza no Brasil. Ficou sem nenhuma companhia feminina no Judiciário estadual por quase 20 anos. Foi nomeada desembargadora em 1975, pelo governador Konder Reis. Alcançou a Presidência do TJ/SC em 1989. Não foi fácil, é verdade, dar esses passos. Mas foram bem dados.  Belos e marcantes passos da condição de mulher.

Apesar de animais


Comportamentos de bandos são “organizados” pela liberação de ferormônio, “substância biologicamente muito ativa, secretada especialmente por insetos e mamíferos, com funções de atração sexual, demarcação de trilhas ou comunicação entre indivíduos” (Houaiss). São “substâncias química que, captadas por animais de uma mesma espécie (intraespecífica), permitem o reconhecimento mútuo e sexual dos indivíduos. São capazes de suscitar reações específicas de tipo  fisiológico e/ou comportamental em outros membros que estejam num determinado raio do espaço físico ocupado pelo excretor. Existem vários tipos: sexuais, de agregação, de alarme, entre outros” (Wikipédia).
Discute-se se humanos seriam suscetíveis aos ferormônios. Ainda que não nos reconheçamos como animais, parece que sim. Nossas estruturas cerebrais mais primitivas, chamadas reptilianas ainda vigoram. “Está demonstrado que grande parte do comportamento humano se origina em zonas profundamente soterradas do cérebro. O cérebro guarda todas as estruturas das quais evoluiu. A mais antiga e primitiva delas é chamada de ”Cérebro Reptiliano”, que controla o lado mais animal e instintivo do ser humano” (curaeascensao.com.br). Quando a nossa dimensão réptil se ativa, assume o controle, praticamente desativando as partes evoluídas do cérebro. Os ferormônios atuariam nessa parte ancestral do cérebro, o que quer dizer que ele pode nos provocar os instintos sem que compreendamos e controlemos as “vontades” que nos ocorrem.
Acontece, todavia, que o humano não é, apenas, o cérebro primitivo. O humano tem um cérebro superior que é, concomitantemente, produto da cultura e produtor de cultura. No humano, o instinto já não existe como no réptil. O humano tem instinto desnaturalizado. O instinto, no humano, está temperado por cultura. O humano tem pulsão. Os estudos de Freud sobre o assunto são complexos. Ousando explicar, eu diria que um cérebro primitivo tem licença de fazer o que lhe pede o organismo, já o cérebro humano tem que pôr em ponderação suas vontades orgânicas e seus débitos sociais. A sociedade cobra do animal humano a administração dos instintos.
Cultura também não é algo estacado. Acontecem ou são feitos acontecer os fatos do mundo, que produzem a história. A cultura modifica-se. Defendo que existe evolução cultural, que há culturas mais avançadas que outras. Culturas arcaicas têm explicações mágicas ou religiosas do mundo, consideram que o mundo é. Culturas evoluídas buscam a compreensão dos fenômenos naturais e sociais, sabem que o mundo não é, mas tão-só está. O mundo que está é um mundo que constrói seus valores, elege modos de viver. O que diferencia o humano moderno do arcaico é isso: a intervenção não só na natureza, mas na própria cultura, escolhendo direções históricas. Assim: o primitivo é a natureza; o arcaico é a leitura de aceitação mágica ou religiosa do mundo; o moderno e a compreensão que podemos intervir no mundo, que os fenômenos naturais e sociais podem ser explicados e redirecionados, que a história é uma produção humana.
Eu queria – e penso que boa parte do mundo civilizado queria comigo – festejar a infrutífera tentativa divina de matar Malala Yosafzai. Os arcaicos talebans buscaram executá-la porque ela, em sendo mulher, desejava comer da árvore do conhecimento, desejava estudar. Não pude, infelizmente, regozijar-me. Alguns primitivos indianos, em bando, chocavam a civilização com o brutal estupro e assassinato de Jyoti Singh Pandy. O Paquistão é afundado em arcaísmo. A Índia vive uma convulsão para livrar-se desse estado. Em ambos os países homens em grupo atacam mulheres: agridem-nas, humilham-nas, estupram-nas, matam-nas. A modernidade pede e oferece mais que ferormônio e superstições misóginas. “O grau de civilização de um povo se mede [também] pelo grau de proteção à mulher” (Carlos Ayres Brito). Eu creio em esforços de construção de valores para uma vida civilizada, uma vida humana não como simples espécie animal, mas como cultura elevada.

Mais um tributo meu




O estudo da História preocupa-se com algo muito interessante: os acontecimentos históricos são desdobramentos lineares dos acontecimentos históricos anteriores, ou há acontecimentos produzidos apesar das circunstâncias? A linearidade da história é defendida por cientistas sociais, diga-se, mais conservadores. A corrente de pensadores que foi influenciada pela razão marxista acredita na possibilidade de quebras nos condicionamentos históricos. Pessoalmente, creio que, regra geral, os fatos antecedentes têm forte interferência nos seguintes; as mudanças abruptas, apartadas de condições sociais dadas, são muito difíceis.
Lembro disso quando penso em tributos. Os diversos tributos são chamados, popularmente, pelo nome de um deles – o imposto. Estranhamente, no Brasil, regra geral, as pessoas odeiam pagá-los. Os teóricos do assunto afirmam que há certa perversidade no sistema tributário que adotamos, pois penaliza mais os pobres. Concordo. Mas não é por isso que se reclama. As queixas são contra o pagamento em si. Diz-se que o dinheiro arrecadado é mal usado pelo governo, ou pelos políticos. Pode ser, mas aí o problema está nos governantes escolhidos, não na tributação.
Em resumo, não haveria Estado, seria inviável qualquer país, sem arrecadação de recursos entre seus cidadãos. Exemplifico. Há algum tempo, em uma assembleia de um clube social, os presentes aprovaram por unanimidade os planos de ação e obras da diretoria que era empossada. Após o consentimento ao proposto, esclareceu-se que o custo da sua realização alcançaria determinado valor. Pouquíssimos estiveram de acordo. Nada pôde ser feito. Ora, um país é uma grande associação. O governo, ou a diretoria, só pode fazer alguma coisa com os meios que obtém dos associados, ou dos contribuintes.
Bem, a nossa história tem essa tradição. A ideia prevalente é a de que o governo está “comendo” o nosso dinheiro. Pouquíssimos pensam que os recursos estão sendo arrecadados para serem aplicados no interesse geral. Por quê? Talvez porque a nossa tradição de vida em comum é muito pobre. Quem sabe devido ao fato de não valorizarmos o mundo político. Vai ver é porque predomina a ganância individual. Quiçá seja por desconfiança: eu não confio no próximo, mesmo que o próximo seja o governo. Não dá para identificar exatamente de onde veio esse desinteresse pela solução dos problemas coletivos, mas acredito que esse é o maior dos nossos problemas.
Trago tudo isso para falar de uma coisa muito simples: o pagamento que devemos fazer para estacionar o nosso veículo em área pública. Muito pouca gente entende que o carro é particular, e o espaço ocupado para estacioná-lo em uma rua qualquer não lhe pertence. Esse trecho de chão é de todos os habitantes da cidade; não é a minha garagem. Portanto, eu devo pagar um tributo pessoal por estar ocupando um lugar que pertence à coletividade. É simples assim.
Há reclamações de não indenização em caso de dano ao veículo. É boa ideia, desde que haja pagamento suplementar, destinado à securitização. Xinga-se a ausência de quem venda um cartão no local eleito para estacionar, na exata hora em que lá se chega. Vários locais cuidam disso. Há outras reclamações. É de se pedir, então, muito justamente, outras soluções. Mas não vale propor a privatização do espaço público. Aquele lugarzinho bem na frente de onde eu vou fazer meus negócios não é, nem pode ser, a extensão da minha garagem. O tributo é necessário. Escolha-se bem quem o administra, mas o cuidado em escolher bons políticos é outro tributo meu.

Porque não?



– Mas por que eu deveria? Se não há uma boa razão, não vejo, não ouço, não falo. Ponho-me como os macacos de Nikko. – Mas os três macacos não estão preocupados com isso. Eles estão à procura de paz. Acham que se não vemos, não ouvimos e não falamos sobre o mal alheio, tudo fica bem. – Pois é isso: se não há uma boa razão, deixo de saber, não me interessa. Não é negócio meu. – Mas não é disso que falo. Aliás, esses macacos sugerem alienação. Excluem-se da realidade. Faltam falas inteligentes sobre o mundo.
– Está vendo? Tenho razão. É de se ficar em silêncio, a maioria fala tolices. – Tens razão coisa nenhuma, se fechar olhos e ouvidos, aí é que não se aprende nada, e nunca se terá o que dizer. E a conversa era outra, falávamos sobre a tua impertinência de sempre perguntar: Por que deveria? Por que iria? Por que faria? Sempre me vens com um: Por que sim? – Claro, não me movo sem lógica. – Lógica? Lógica é coerência, não é contabilidade de disposição. Vais organizar tuas emoções?
– Lá vens tu. Pareces esses azafamados que detratam a burocracia. A vida tem que ter ordem. Não se pode, sem mais, fazer qualquer coisa por qualquer motivo. – Também penso assim. Mas não é possível ficar à procura de uma razão anterior para os gestos da vida. – Ao contrário, deve-se procurar a razão. A razão dá uma ideia da atitude, dá mais certeza, dá uma clara indicação de quando não fazer. – Uma configuração de panorama futuro? Desconfio que isso jamais se confirme. O devir é uma relação da vontade com o aleatório, e isso é o fascinante da existência.
– As pessoas… Olha, as pessoas agora me vêm com isso, de lançarem-se à sorte. Ao mesmo tempo vivem com medo, querem segurança. Como pode? As coisas têm que ser analisadas. – Assim me parece… A ponderação… Mas isso não garante nada. Aí é que está a questão. As angústias vêm daí. Pensas que as pessoas têm medo porque lhes falta uma segurança possível. Ora, a incerteza compõe o quadro da vida. – Errado. Podemos perfeitamente traçar planos. – Sim… Mas o futuro não tem compromisso com eles. E sempre podemos, nós mesmos, mudar de ideia, não é?
– Minhas ações, desculpa, mas eu as condiciono, considerando o momento, as circunstâncias. – Jamais. A conjuntura é que condiciona as tuas ações. Repito, é uma relação: tu opinas, mas, se “navegar é preciso, viver não é preciso”; viver não é exato, mal fazendo um trocadilho com a poesia. – Poetas estão fora do mundo, fico com minhas cautelas. – Cautelas que também as tenho, mas levo-as comigo, não fico nelas. Olha, achei na internet. – Que é? – Escritos. São poéticos, são de meninas poetas, não vais gostar. – Ora, não me incomodes. Diz lá.
“Ah!, fico com o por que não?, é desafio: por que não escutar, olhar, dizer? Por que não fazer? Sou livre para as tentativas. O por que sim? sugere arrependimento” (Adriana Alves). “Sou toda por que não?, os meus encontros e desencontros jamais serão indicados por um por que sim?. O por que não? é a aventura provocadora da vida” (Karine Gomes Vieira). “Sim, sim: por que não?. Cada por que não? é uma possiblidade. Quero muitas possibilidades” (Maíra Zimmermann).

O possível e a política


Se as alternativas políticas que me são postas equivalem-se – se tudo é a mesma coisa –, então tenho as devidas licenças éticas para não fazer nada. Logo, não é que eu fico no conforto pequeno-burguês porque traio o discurso de preocupação com o País. Nada disso. É que eu olho o derredor eleitoral com olhos desdenhosos e, superior a tudo isso, senhor da solução impraticável do mundo, declaro o meu pretexto para a ausência. Tem gente assim. E essa gente se justifica, a si e à sua posição política, com essa elementar proteção do ego.
A psicanálise chamaria isso de mecanismo de defesa. É um amparo improvável de mim mesmo, do meu comportamento, da minha ação ou inação. A pequeno-burguesia enfastiada, que declara lamentar o estado da Nação, arranja um achaque socialmente aceitável, mas falso, e lava as mãos. “Político é tudo ladrão”, “situação e oposição não se diferem nas propostas”, “meus ideais não estão representados nos candidatos que se apresentam” são frases vazias, são ardis morais, são exculpações. Clinicamente, um psicólogo definiria essa atitude como racionalização.
Há outro termo psicanalítico aplicável. Certos neuróticos têm-se em conta por demais elevada, são auto-referentes, idealizam uma imagem de si próprios. Não adulteram virtudes, mas falsificam a concepção que têm sobre suas próprias virtudes. Fabricam um “deveria ser”, um desenho bonito que não lhes representa, mas que seria pintado para atender às exigências do orgulho neurótico, à glorificação de suas qualidades imaginadas. Para essas pessoas, ninguém presta. Aliás, quanto menos elas mesmas prestam, mais declaram a imprestabilidade geral.
Mas o mundo não é um discurso grandiloquente de pureza. E a humanidade, ou uma parte dela, vem tendo um trabalhão danado para melhorar as coisas. Na esfera individual, a primeira marca civilizatória, o abrir mão do ímpeto e da força, o controle do Id, até hoje não é questão resolvida. Não fossem os meios de repressão e as formatações ideológicas, e a barbaridade imperaria. No espaço público, o esforço de institucionalizar as relações de poder, igualmente não se concluiu. Existe pouco de república e muito de personalismo no universo político. No Brasil, há, até, orgulho em declarar “eu não voto em partido, eu voto na pessoa”.
Sempre me podem argumentar que a “nossa política é suja, mesmo”. Claro, não faltarão exemplos a dar razão ao argumento. Exatamente por isso relevar o momento eleitoral é necessário. Para melhorar as condições cívicas da Pátria, há que se ter em conta as condições materiais, as relações históricas que as produziram, ou seja, há que se encarar a política como ela é, sem abstrair os fatos indesejados, ainda que indesejáveis. Então, o gesto concreto. A partir da crua realidade, emprestar alguma contribuição para que ela seja o que se gostaria que fosse. Costuma-se chamar isso de “pôr a mão na massa”. Fora disso, presunção.

Ela, em forma e conteúdo


Levou-se ao mar como sempre fizera. Deu-se sensualmente às águas e delas saiu molhada, deleitosa, cheia de graça. Elogiaram-lhe o corpo. Respondeu com ar de quem se surpreendia: “Não basta”. Enquanto caminhava, se lhe repercutiram as próprias palavras: “Não basta”. Então entendeu: “Já não bastava”. Não lhe veio qualquer culpa pelo gosto que tinha nos prazeres dos sentidos nem pelo tanto que os gozara. O corpo, afinal, ademais de belo, era lascivo. Ela acolhia essa lascívia com satisfação. Gostava de se passar, de oferecer-se mais do que o corpo pedia.
Dava-se, entretanto, conta de que se faltava. Pensou apreensiva que a sua juventude entrava em agonia, que teria que assumir os dissabores da vida adulta. Veio-lhe o “ser ou não ser, eis questão. Será mais nobre sofrer na alma… Talvez sonhar”. Recusou os conflitos do verso, não queria sofrer na alma, queria o talvez sonhar. Sorriu, pensou: “Estou com as dores das circunstâncias. As circunstâncias da existência são a alma da gente. Eu penso, logo sofro.” Sentou-se na areia. Deu-se ao prazer de se sentir destino dos olhares ávidos por seu corpo.
À cabeça não lhe vieram as músicas da noite anterior. Encontrou-se cantarolando a suave melodia: “Esses moços, pobres moços \ Ah! Se soubessem o que eu sei”. Não podia ser, mas se conformou: dores de passagem. A culpa seria do que andara lendo. Lera desavisadamente. Na faculdade, as tarefas… Não imaginava que daria nisso, que pensaria, que tudo aquilo habitaria a sua cabeça, que já não teria como deixar de fazer as contas do mundo. Entendeu-se: gostava de ser o que era; fascinava-se com o que podia ser. Eram as amarguras do superar-se e os prazeres da superação.
Olhou o derredor com um jeito pensado. Era gosto e aflição. Recordou um texto: “A dor de ser intelectual: O professor nos avisou que estávamos entrando por uma porta que já não tinha volta. Tornávamo-nos intelectuais e não importa de qual classe social vínhamos, nunca poderíamos voltar a ela, jamais seríamos aceitos em nenhuma delas. Isso me fica claro agora. E nem sou intelectual o bastante, pelo menos não como gostaria de ser. Há tanto ainda o que ler e aprender. Sinto-me cansado e angustiado por isso” (Sérgio Rodrigo, razoesinconfessas.blogspot).
“Eu caçador de mim \ Vou me encontrar \ Longe do meu lugar \ Nada a temer senão o correr da luta.” “Esses versos, partes da canção… Discordo. Eu construtora de mim, vou me fazer a mim, me erguer sobre o meu lugar. Prefiro assim. Não temo o correr da luta, gosto de peleia, sempre pelejei. Eu me inventei, me fiz e me quero bem. Eu vou ser eu, não vou ser multidão. Bem, eu quero ser intelectual. E eu sei por quê.”
“Um intelectual é leal, mas contestador (Sartre); é maldito, nomeia as coisas indizíveis (Verlaine); é uma testemunha e um ator de seu tempo; não traça normas a ninguém e nem detém nenhuma coisa; busca a natureza intrínseca de tudo e as múltiplas verdades contidas numa mesma realidade; vê em si mesmo os vestígios do futuro e as pegadas do passado; aponta para a desordem sem tentar controlá-la. O prazer do intelectual é execrar e ser execrado, é ser livre apesar de pertencer a todas as misérias do mundo” (Gisele Leite, br.monografias.com).
Ao fim de nossa conversa, disse-me ela: “Isso tudo é verdade e me chega para o ofício de intelectual, mas não me satisfaz para a vida. Para viver, não me bastam minhas formas, mas também não me vou contentar com a compreensão do aparente ou das subjacências das coisas. Se penso sobre modos de vida, penso, igualmente, em viver. Contabilidade, para ir zerando: um tanto à função do intelectual, outro à esbórnia das emoções e dos sentidos. Se eu tiver consciência do mundo, mas não tiver consciência do mim, não existo. Até mais ver.”

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O BBB e sua inconstitucionalidade



BBB, da Globo fere a dignidade da pessoa humana – artigo 1, inciso III, da Constituição Federal. E, em havendo conflito entre dois direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana x liberdade de expressão – artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal –, prevalece o primeiro. Hoje, a situação se tornou ainda mais clara para mim. A dignidade da pessoa humana é um dos princípios fundamentais da Constituição do Brasil e a liberdade de expressão é norma ou direito fundamental. Em direito, o princípio sobrepõe-se à norma, até porque é do princípio que a norma nasce. Portanto, não há dúvida, analisando-se algumas passagens veiculadas ao vivo pela Rede Globo no programa BBB e somando-se a mais esta que desandou em suspeita de crime de abuso sexual, ou mesmo de estupro, oBBB fere, sim, a dignidade da pessoa humana e pode ser tirado do ar. Observe-se que as imagens do malfadado vídeo mostram que, se não houve estupro, houve abuso sexual porque a moça estava apagada. Agora, convenhamos: por que uma mulher está inconsciente, dormindo, apagada, ou em coma, como no filme Fale com ela, de Almodóvar, um homem pode fazer o que quiser com ela? Digo que mesmo que a tal Monique fosse uma prostituta não pode porque, afinal, ela é uma pessoa humana. Além do mais, a Rede Globo, com seu BBB, fere outro princípio da Constituição Federal: o artigo 221 – IV , que diz:
“A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.”
Por fim, como se não bastasse, há infração ao Código Penal, pois, embora a moça diga que não foi penetrada, as imagens mostram que houve abuso sexual ao vivo, sim... Isso não pode acontecer nem nopay per view. Não se trata de um filme pornô porque o que se passa em um filme é ficção. Degradação da pessoa humana, ao vivo ou aonde quer que seja, é inconstitucional. Se no Brasil existe Constituição e Justiça, o BBB pode ser tirado do ar. Isso nem sequer depende da discussão sobre moral e bons costumes. Portanto, esperemos que o Ministério Público acione o Poder Judiciário e exija que o BBB saia do ar. E que os Ministérios das Comunicações e da Justiça tomem as providências cabíveis no âmbito de suas competências.Como se vê, não é hora do MP, Judiciário e governo ficarem de joelhos perante a Rede Globo. No Brasil só temos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.           Não podemos deixar uma rede de TV mandar no país. De outro ângulo, na área cível, a família ou a mulher estuprada dentro da casa do BBB, se quisessem poderiam até processar a Rede Globo civilmente por danos morais em função de culpa in eligendo e culpa in vigilando da emissora, eis que a mesma escolheu mal os participantes do BBB e não monitorou o comportamento deles. Pela mesma razão, os patrocinadores do BBB também podem não só rescindir os contratos de patrocínio como exigir a reparação de danos morais e financeiros. Afinal, a emissora está levando a reputação das empresas para o brejo.Por fim, semana passada uma participante do BBB disse que vai beber até cair. Na penúltima edição me parece que uma das participantes até desmaiou dentro da casa em função de bebedeiras. Daí que um internauta reclamou: “E a campanha ‘Beba com moderação’?” Ninguém vai fazer nada contra essa propaganda odiosa da Rede Globo de incitar o povo a beber exageradamente? O tratamento da cirrose é muito caro; o atendimento aos politraumatizados por acidentes automobilísticos causados por excesso de bebida também é muito caro. O SUS que já está falido, vai ficar pior ainda... E essa turma que bebe muito é presa fácil do tráfico de drogas...
E aí, como é que fica o Brasil?